quinta-feira, 3 de novembro de 2011

Carta ao amigo

O raciocínio anda lento. Se arrasta na lama do caos.
Arrasta só o essencial, por que o resto é impossível.
E infelizmente se esquece do impossível.

A mente anda cansada. Estafada com a pequenez.
Estafada com a mediocridade da estupidez.
Estupefata com a pequenez.

A linearidade está confusa. Confusa com tantas linhas a seguir.
Confusão é a constante certeza do ultimamente.
Ultimamente me esqueço do que fazia.

A memória anda esquecida. Esquecida pelo acúmulo.
Acúmulo de lógicas e coisas a lembrar.
Lembrar do que não foi.

O coração anda angustiado. Angústia do tempo.
Tempo que não anda, não chega, não passa.
A passos fortes ouve-se o coração.

Os pés se movem, ansiosos. Ansiedade do desconhecido.
Desconhecido esse que se vê no horizonte.
Horizonte, que a passos largos se aproxima.

O horizonte se projeta longo. Longo como a visão.
Visão de tempos melhores e mais calmos.
Calmos como o caos.

O caos se mostra adequado. Adequado como o Sol.
Sol que ilumina, aquece, anima e regenera.
Regenera a queimadura.

Os olhos diante das lágrimas se turvam. Turvam o motivo.
Motivo este que por pouco se perdeu e morreu.
Morreu o brilho dos olhos.

A amizade se foi, se evaporou. Evaporou no começo.
No começo se foi, e lembrada será até o final.
Finalmente agora, só as saudades.

Gostaria que você estivesse aqui. Aqui, como eu estive.
Mas eu estive, e você não mais o é.
É, foi, estava, gostaria. Se.

Tenha uma boa vida, meu amigo. Seja feliz.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Só mais 10 dias, há 8 anos.

E está chegando, só mais 10 dias.

Nunca pensei que medo, ansiedade e felicidade poderiam andar juntos, e ainda dar essa sensação de triunfo. A cabeça já não funciona mais como antes por causa do cansaço e dos problemas menores, mas acima de tudo, fica aquele sentimento que você está fazendo a coisa certa.

E está chegando, só mais 10 dias.

Será dia 12 de novembro, agora. Será apenas mais um passo em frente, e possibilitará mais uma infinidade de passos em frente. E como foi difícil dar esse passo em frente, meu Boi-Tatá, como foi difícil. Mais de 8 anos batalhando e dando cabeçadas na parede, só pra conseguir dar esse passo.

E está chegando, só mais 10 dias.

Nestes últimos 8 anos, muitas pessoas saíram da minha vida. Algumas fui eu que pedi para saírem, outras me pediram, e outras simplesmente se foram. E nesses 10 dias que faltam, não posso deixar de pensar que essas pessoas que se foram também fazem parte disso tudo que está acontecendo. Se me ensinaram, atrapalharam, morreram ou simplesmente sumiram, fizeram parte de todo o processo.

E está chegando, só mais 10 dias.

Nestes últimos 8 anos, muitas pessoas também entraram na minha vida. Pessoas que tiveram consequências boas ou más em mim, mas todas importantíssimas pra definir o que eu sou hoje. Sem os vilões, os heróis não tem sentido.

E está chegando, só mais 10 dias.

Não entraram só pessoas más nesses 8 anos, longe disso. A gente tem mania de realçar a pior parte da nossa história, como todo tablóide sensacionalista. Mas eu seria extremamente injusto com a vida se não agradecesse as pessoas boas que apareceram nesses 8 anos; elas superam de longe as que me machucaram de alguma forma, e nesses últimos tempos, fazer essa retrospectiva me mostrou o quanto sou sortudo.

E está chegando, só mais 10 dias.

Recebi ajuda de todos os lados. E no último ano em especial, recebi ajuda de pessoas que eu nem imaginava o quanto gostavam de mim. Me ofereceram ajuda pra o que eu precisasse (de coração mesmo, dá pra perceber), ou ofereceram uma tarde de conversas que muda a sua vida. Ofereceram limões pra tomar caipirinha e dar risadas, ou uma madrugada de conversas íntimas, pra aliviar a angústia absurda de alguns momentos.

E está chegando, só mais 10 dias.

Outras ofereceram o pouco dinheiro que tinham como presente, o que me fez bufar de indignação. Depois me mandaram calar a boca e me mostraram que estão tão felizes quanto eu com esse passo em frente, e fazem questão de participarem disso. Elas sabem que realmente não precisava do dinheiro, mas esse presente é mais pra elas do que pra mim. Choraram mais do que eu, por sinal.

E está chegando, só mais 10 dias.

Cinco pessoas em especial me fazem ficar com lágrimas nos olhos quando lembro delas. Meus pais, meus avós e uma certa amiga que me faz perder horas conversando sobre política, literatura e sobre a vida. Quando contei que ia dar esse passo em frente, fizeram questão de ter certeza que eu sabia aonde estava me metendo. Me contaram o lado ruim e o bom, sem reservas. Se preocuparam com o que poderia acontecer de ruim, e me deram o maior olhar e sorriso de orgulho que alguém poderia dar quando viram que eu sabia aonde estou indo. O maior presente de todos.

E está chegando, só mais 10 dias.

Hoje eu sei que comecei a virar adulto há 8 anos atrás, quando pensei "quero ficar com ela". Obviamente, nem tudo foram flores. Sofri e chorei muito, larguei sonhos, errei; mas também acertei bastante, sorri bastante e conquistei outros sonhos. Há 8 anos eu era um moleque que sonhava em mudar o mundo; hoje eu sou um homem que sonha em ter um mundo melhor, e luta por isso.

E está chegando, só mais 10 dias.

Há 8 anos, eu achava que entendia tudo; hoje eu sei que não entendo nada, apesar de saber alguma coisa. O gigante prepotente se tornou no humano humilde, e é difícil não pensar que os tombos da vida me ensinaram mais do que os triunfos.

E está chegando, só mais 10 dias.

Perceber que seus últimos 8 anos só tiveram uma meta, e que daqui a pouco você vai conseguir realizá-la é aterrorizante. Como HP Lovecraft genialmente concebeu seu Cthulhu, o maior pesadelo que existe é o medo do desconhecido. Felizmente Eduardo Galeano também disse que perseguir o horizonte nunca é em vão, vale a pena essa viagem.

E está chegando, só mais 10 dias.

Daqui a 10 dias eu vou estar casado. A maior meta da minha vida até agora estará concretizada, e novos horizontes se abrirão, para eu dar outros passos em frente, dessa vez com um pouco menos de solidão. É assustadora e terrivelmente reconfortante essa sensação.

E está chegando, só mais 10 dias.

Que fique registrado: muito obrigado a todos que participaram da minha vida. Sem vocês, sejam os que ajudaram ou os que me atrapalharam, tudo isso seria impossível. Muito obrigado.

Só mais 10 dias, finalmente.

sábado, 27 de agosto de 2011

Sobre o póstumo sono dos justos

E um dia, eu acordei morto. Morto, tinha batido as botas mesmo.
Olhei em volta, e na hora percebi o que estava acontecendo.

Meu corpo, já cinzento e inerte, guardado dentro de uma gaveta do IML. O legista entrou com a minha mãe e minha namorada na sala, e eu vi dor nos olhos das duas; sabia que meu pai não tinha condições mentais de me ver sem vida, alí jogado como se fosse um pedaço de carne.
Minha mãe com aquele olhar duro que só ela tem, jogando a dor pra depois; ela sabia que agora não era a hora de se lamentar.
Minha namorada, coitada, chorando, e com uma expressão estupefata. Daqui menos de três meses a gente ia se casar, criar uma vida, uma família. Definitivamente, ser viúva antes de casar não estava nos planos dela.

Tentei desesperadamente dizer que eu estava bem, que aquele pedaço de carne cinzenta era só isso... um pedaço de carne cinzenta. Eu, apesar de ainda não saber o que ia acontecer comigo ou pra onde ia, tinha consciência que dalí que frente tudo ia ser melhor, mais fácil e sem dor. Eu estava bem, e aceitei calmamente o fato de ter morrido; o que me afligia, e que também me afligiu a vida inteira, foi a dor alheia.
Enquanto era vivo, sempre tentei ajudar todo mundo, muitas vezes sacrificando a mim mesmo. Nunca suportei muito bem ver pessoas em dificuldades, e depois da morte isso não era diferente. O desespero que eu sentia era palpável, junto com os gritos que saíam pra ninguém escutar.
Em meio aos meus gritos, ví as duas reconhecerem meu corpo, e se afastarem em silêncio, cada uma com a sua dor. Definitivamente, não era pra ser assim.

No velório, alguns amigos, familiares. Nada grandioso ou caro, e fiquei feliz que foi assim. Além da nossa falta de dinheiro, eu obviamente sabia o que estava sendo velado alí, e fiquei feliz que foi tudo o mais rápido e simples possível. Nunca fez sentido pra mim um caixão luxuoso e almofadado para um corpo sem vida, que obviamente não liga muito pra conforto e outras bobagens humanas.
Humano. Palavra estranha. Alguns seres humanos que eu conheci foram os seres menos humanos que eu não tive o privilégio de deixar de conhecer. Bom, se há algum ser maior e tudo-mais lá em cima, daqui a pouco eu ia ter a oportunidade de conversar com ele e fazer umas perguntas.
Se eu fiz as perguntas? Fiz. Se ele me respondeu? Sim. Não vou entrar em discussões filosóficas sobre o sentido da vida, do universo e tudo mais, mesmo porque não é todo dia que a gente tem a oportunidade de entrar na internet aqui em cima e eu tenho coisas mais importantes pra falar.

Na hora de carregar o caixão, eu carreguei junto. Obviamente, meu estado espiritual não me permitia alterar o plano material, então minha força não adiantou de nada pra carregar aquele pedaço de carne, mas dava pra ver que as pessoas que estavam próximas iam se acalmando, aceitando o fato. Acredite, carregar o próprio caixão não é algo que se habitue, e é natural a gente botar na balança como carregou aquele corpo durante a vida.
E aí é a chave, o motivo de todo esse texto que escrevo: como você carregou o seu corpo?
Se eu errei? Lógico que errei, e várias vezes. Mas sempre tive a decência de pedir desculpas depois, e tentar remediar o estrago. Nem sempre é possível, mas a iniciativa é válida.
Se eu fui feliz durante a vida? Não o tempo todo, assim como você. Tive meus momentos felizes e meus momentos tristes, mas tive a sabedoria de entender antes da morte que a vida é assim. A tristeza faz parte, é uma característica da vida. Idiota é o ser "humano" que acha que deve ser feliz a todo custo.
Se eu aproveitei a vida? Sim, aproveitei, e provavelmente você vai discordar da forma eu fiz isso. Sabe, esse verbo tem um sentido diferente para cada um, em cada hora da vida. Em alguns momentos, aproveitar a vida pra mim era dormir; já em outros, era curtir a insônia. Eu sei que não faz sentido.
A verdade, é que eu sempre pude encostar a cabeça no travesseiro e dormir sem culpa de ter feito nada. Se eu errei, tentei consertar. Se machuquei, tentei curar. Se chorei, chorei com gosto. Se dei risada, dei uma risada tímida; nunca fui muito de gargalhar não.

E aqui fecho meu póstumo texto, brindando a todos que encostam suas cabeças no travesseiro e dormem o sono dos justos. Porque ser justo não é ser perfeito, é apenas ser... justo.

segunda-feira, 14 de março de 2011

Cigarro

O homem acordou assustado: não se lembrava do sonho que tivera, mas com certeza era algo ruim, perturbador. Ainda tonto e desorientado, conseguiu focar os olhos no teto, e olhou para a esquerda. Ali estava ela, dormindo um sono profundo e silencioso. Seu peito nú subia e descia lentamente, como se ela o dissesse para se acalmar, que tudo ia acabar bem. Olhando para ela, o homem se acalmou, e se lembrou da noite passada: seus corpos ardendo juntos num prazer sôfrego, dilacerante. O lado animal dos dois tinha aflorado, e os dois se saciaram, um com o outro, física e espiritualmente. O homem se corou, lembrando dos detalhes, e deu uma risadinha no canto dos lábios. Percebeu que o sono havia ido embora, e se levantou. Foi até a sala, se sentou na beira da janela e acendeu um cigarro, dando aquela tragada profunda e deliciosa.

Ficou olhando a fumaça subir lânguida e preguiçosa, em seus mais diversos desenhos e floreios, tão leve e sublime como só a fumaça pode ser. Logo, pensamentos e preocupações resolveram aparecer em sua mente; era sempre assim quando se afastava dela: o mundo se tornava novamente real, com aquela frieza e crueldade que só a vida pode ter. Ficou pensando naquela calha que precisa ser limpa, naquela conta que está atrasada, naquele amigo que faz séculos que ele não vê, naquela torneira que sempre dá choque, na mistura do almoço de amanhã... frango ou pimentão recheado?

Pensou que seria muito mais simples se existisse a possibilidade de colocar todos os problemas dentro de um cigarro e pouco a pouco eles irem queimando, subindo e se dissipando no ar, deixando apenas um rastro sujo e mal-cheiroso dentro do corpo. No mesmo instante percebeu que é assim que a vida funciona: pouco a pouco os problemas se vão, e novos aparecem. O rastro sujo é a nossa experiência que teima em nos deixar cada vez mais descrentes com o resto das pessoas; amargos, calculistas e realistas.

Nada faz sentido! Cimentou amizades que o tempo quebrou, aprofundou amores que a mágoa destruiu, quebrou muros que a vida reergueu. Absolutamente nada faz sentido.
Desde que o homem é homem ele tenta entender o porque das coisas, e alguns milhares de anos depois, ninguém ainda achou a resposta.
No meio do cigarro, pensou na humanidade em si. 
Como o homem, animal sociável, só sobrevive tendo um comportamento canibal? 
Como que o mundo mais justo só é possível se haver miséria, fome, desemprego? 
Dizem que são ideias que movem o mundo. Isso é errado: a ideia só nos dá a chance de mudar o mundo. O problema da ideia é que pela sua própria natureza, ela é instável. 
Como é possível provar a existência de qualquer entidade divina? Pela sua própria natureza, a fé precisa da incerteza para continuar sendo o que é. 
Porque o pensamento lógico e o emocional podem entrar em conflito? Não é justo que um cérebro tenha a capacidade de se confundir. 
Como o amor pode ser algo tão próximo à entrega total, e como esta pode se tornar obssessão, tão próxima da raiva?

No meio do cigarro, pensou que a vida é paradoxal, e esse é o sentido da vida: não ter sentido algum. Por si só a vida depende da morte, a felicidade depende da mágoa, a amizade depende da decepção e o amor depende da raiva.
Pensou no paradoxo que ele mesmo era: misantropo e carinhoso, ansioso e calmo, forte e fraco. Realmente, nada faz sentido.

Apagou o cigarro no cinzeiro, e voltou para o quarto. Olhou ela dormindo, ainda calma, e se deliciou com a visão da mulher que amava: calma, leve e sublime como só ela pode ser. Aquilo sim fazia sentido.

Texto inspirado no livro do Rob Gordon (na minha opinião, o maior escritor-blogueiro que existe) e no poema "Tabacaria" de Fernando Pessoa, apresentado, discutido e entendido graças à Suely Farah.