segunda-feira, 14 de março de 2011

Cigarro

O homem acordou assustado: não se lembrava do sonho que tivera, mas com certeza era algo ruim, perturbador. Ainda tonto e desorientado, conseguiu focar os olhos no teto, e olhou para a esquerda. Ali estava ela, dormindo um sono profundo e silencioso. Seu peito nú subia e descia lentamente, como se ela o dissesse para se acalmar, que tudo ia acabar bem. Olhando para ela, o homem se acalmou, e se lembrou da noite passada: seus corpos ardendo juntos num prazer sôfrego, dilacerante. O lado animal dos dois tinha aflorado, e os dois se saciaram, um com o outro, física e espiritualmente. O homem se corou, lembrando dos detalhes, e deu uma risadinha no canto dos lábios. Percebeu que o sono havia ido embora, e se levantou. Foi até a sala, se sentou na beira da janela e acendeu um cigarro, dando aquela tragada profunda e deliciosa.

Ficou olhando a fumaça subir lânguida e preguiçosa, em seus mais diversos desenhos e floreios, tão leve e sublime como só a fumaça pode ser. Logo, pensamentos e preocupações resolveram aparecer em sua mente; era sempre assim quando se afastava dela: o mundo se tornava novamente real, com aquela frieza e crueldade que só a vida pode ter. Ficou pensando naquela calha que precisa ser limpa, naquela conta que está atrasada, naquele amigo que faz séculos que ele não vê, naquela torneira que sempre dá choque, na mistura do almoço de amanhã... frango ou pimentão recheado?

Pensou que seria muito mais simples se existisse a possibilidade de colocar todos os problemas dentro de um cigarro e pouco a pouco eles irem queimando, subindo e se dissipando no ar, deixando apenas um rastro sujo e mal-cheiroso dentro do corpo. No mesmo instante percebeu que é assim que a vida funciona: pouco a pouco os problemas se vão, e novos aparecem. O rastro sujo é a nossa experiência que teima em nos deixar cada vez mais descrentes com o resto das pessoas; amargos, calculistas e realistas.

Nada faz sentido! Cimentou amizades que o tempo quebrou, aprofundou amores que a mágoa destruiu, quebrou muros que a vida reergueu. Absolutamente nada faz sentido.
Desde que o homem é homem ele tenta entender o porque das coisas, e alguns milhares de anos depois, ninguém ainda achou a resposta.
No meio do cigarro, pensou na humanidade em si. 
Como o homem, animal sociável, só sobrevive tendo um comportamento canibal? 
Como que o mundo mais justo só é possível se haver miséria, fome, desemprego? 
Dizem que são ideias que movem o mundo. Isso é errado: a ideia só nos dá a chance de mudar o mundo. O problema da ideia é que pela sua própria natureza, ela é instável. 
Como é possível provar a existência de qualquer entidade divina? Pela sua própria natureza, a fé precisa da incerteza para continuar sendo o que é. 
Porque o pensamento lógico e o emocional podem entrar em conflito? Não é justo que um cérebro tenha a capacidade de se confundir. 
Como o amor pode ser algo tão próximo à entrega total, e como esta pode se tornar obssessão, tão próxima da raiva?

No meio do cigarro, pensou que a vida é paradoxal, e esse é o sentido da vida: não ter sentido algum. Por si só a vida depende da morte, a felicidade depende da mágoa, a amizade depende da decepção e o amor depende da raiva.
Pensou no paradoxo que ele mesmo era: misantropo e carinhoso, ansioso e calmo, forte e fraco. Realmente, nada faz sentido.

Apagou o cigarro no cinzeiro, e voltou para o quarto. Olhou ela dormindo, ainda calma, e se deliciou com a visão da mulher que amava: calma, leve e sublime como só ela pode ser. Aquilo sim fazia sentido.

Texto inspirado no livro do Rob Gordon (na minha opinião, o maior escritor-blogueiro que existe) e no poema "Tabacaria" de Fernando Pessoa, apresentado, discutido e entendido graças à Suely Farah.