sábado, 27 de agosto de 2011

Sobre o póstumo sono dos justos

E um dia, eu acordei morto. Morto, tinha batido as botas mesmo.
Olhei em volta, e na hora percebi o que estava acontecendo.

Meu corpo, já cinzento e inerte, guardado dentro de uma gaveta do IML. O legista entrou com a minha mãe e minha namorada na sala, e eu vi dor nos olhos das duas; sabia que meu pai não tinha condições mentais de me ver sem vida, alí jogado como se fosse um pedaço de carne.
Minha mãe com aquele olhar duro que só ela tem, jogando a dor pra depois; ela sabia que agora não era a hora de se lamentar.
Minha namorada, coitada, chorando, e com uma expressão estupefata. Daqui menos de três meses a gente ia se casar, criar uma vida, uma família. Definitivamente, ser viúva antes de casar não estava nos planos dela.

Tentei desesperadamente dizer que eu estava bem, que aquele pedaço de carne cinzenta era só isso... um pedaço de carne cinzenta. Eu, apesar de ainda não saber o que ia acontecer comigo ou pra onde ia, tinha consciência que dalí que frente tudo ia ser melhor, mais fácil e sem dor. Eu estava bem, e aceitei calmamente o fato de ter morrido; o que me afligia, e que também me afligiu a vida inteira, foi a dor alheia.
Enquanto era vivo, sempre tentei ajudar todo mundo, muitas vezes sacrificando a mim mesmo. Nunca suportei muito bem ver pessoas em dificuldades, e depois da morte isso não era diferente. O desespero que eu sentia era palpável, junto com os gritos que saíam pra ninguém escutar.
Em meio aos meus gritos, ví as duas reconhecerem meu corpo, e se afastarem em silêncio, cada uma com a sua dor. Definitivamente, não era pra ser assim.

No velório, alguns amigos, familiares. Nada grandioso ou caro, e fiquei feliz que foi assim. Além da nossa falta de dinheiro, eu obviamente sabia o que estava sendo velado alí, e fiquei feliz que foi tudo o mais rápido e simples possível. Nunca fez sentido pra mim um caixão luxuoso e almofadado para um corpo sem vida, que obviamente não liga muito pra conforto e outras bobagens humanas.
Humano. Palavra estranha. Alguns seres humanos que eu conheci foram os seres menos humanos que eu não tive o privilégio de deixar de conhecer. Bom, se há algum ser maior e tudo-mais lá em cima, daqui a pouco eu ia ter a oportunidade de conversar com ele e fazer umas perguntas.
Se eu fiz as perguntas? Fiz. Se ele me respondeu? Sim. Não vou entrar em discussões filosóficas sobre o sentido da vida, do universo e tudo mais, mesmo porque não é todo dia que a gente tem a oportunidade de entrar na internet aqui em cima e eu tenho coisas mais importantes pra falar.

Na hora de carregar o caixão, eu carreguei junto. Obviamente, meu estado espiritual não me permitia alterar o plano material, então minha força não adiantou de nada pra carregar aquele pedaço de carne, mas dava pra ver que as pessoas que estavam próximas iam se acalmando, aceitando o fato. Acredite, carregar o próprio caixão não é algo que se habitue, e é natural a gente botar na balança como carregou aquele corpo durante a vida.
E aí é a chave, o motivo de todo esse texto que escrevo: como você carregou o seu corpo?
Se eu errei? Lógico que errei, e várias vezes. Mas sempre tive a decência de pedir desculpas depois, e tentar remediar o estrago. Nem sempre é possível, mas a iniciativa é válida.
Se eu fui feliz durante a vida? Não o tempo todo, assim como você. Tive meus momentos felizes e meus momentos tristes, mas tive a sabedoria de entender antes da morte que a vida é assim. A tristeza faz parte, é uma característica da vida. Idiota é o ser "humano" que acha que deve ser feliz a todo custo.
Se eu aproveitei a vida? Sim, aproveitei, e provavelmente você vai discordar da forma eu fiz isso. Sabe, esse verbo tem um sentido diferente para cada um, em cada hora da vida. Em alguns momentos, aproveitar a vida pra mim era dormir; já em outros, era curtir a insônia. Eu sei que não faz sentido.
A verdade, é que eu sempre pude encostar a cabeça no travesseiro e dormir sem culpa de ter feito nada. Se eu errei, tentei consertar. Se machuquei, tentei curar. Se chorei, chorei com gosto. Se dei risada, dei uma risada tímida; nunca fui muito de gargalhar não.

E aqui fecho meu póstumo texto, brindando a todos que encostam suas cabeças no travesseiro e dormem o sono dos justos. Porque ser justo não é ser perfeito, é apenas ser... justo.